Uma separação começa muito antes de seus sintomas: não olhar nos olhos, transar superficialmente, não sonhar junto, não se beijar...Todas as estruturas que corroem uma relação já estão presentes logo no começo - mais: são a base na qual a relação se constroi. Temos a sensação de que o fim acontece porque o trem saiu dos trilhos; parece absurdo pensar que na maioria dos relacionamentos ele nunca chegou a entrar.
A mesma passividade pela qual nos sentimos arrebatados por aquela "química" de vida própria depois causará a sensação de que o sofrimento vem de fora, como se não fosse tecido por nós. Uma delícia quando o amor surge do nada: uma tragédia quando some do mesmo jeito.
A mesma lógica de mercado que usamos para avaliar benefícios de uma relação, comparando atributos antes de decidir, vai exigir que o outro funcione conforme anunciado ou substituí-lo por um produto com mais qualidades.
A mesma negociação que no começo nos faz ceder, tolerar, causa desânimo e depois produzirá aquela conversa de reconciliação cheia de exigências: "Eu quero receber isso; o que você quer de volta?"
A mesma alucinação romântica que vê o parceiro como um ser especial nos fará podar, rebaixar, diminuir, humilhar o outro, como uma punição por ele não ser tão perfeito quanto imaginamos.
O mesmo controle que adoramos reificar e divulgar - "Você é meu", "Eu sou sua", "Eu te conheço como ninguém" - depois se transformará em ciúme, claustrofobia, previsibilidade.
O mesmo apego pela experiência de felicidade (fluxo de ânimo, propósito, conforto, brilho no olho), cuja aparante satisfação nos cega para a importância de cultivar felicidade de modo autônomo, esvaziará os pulmões e a vontade de sair da cama assim que o relacionamento entortar.
Somos destruídos pelos mesmos jogos que valorizamos e alimentamos enquanto estamos radiantes. Tentar sair ileso é como pedir o côncavo sem o convexo. O fim trágico é só o outro lado do começo iludido.
Portanto, o melhor modo de seguir um relacionamento não é evitar erros, como se tudo já tivesse vem e apenas fosse preciso não estragá-lo, mas perceber o quanto já estamos estragados (passivos, autocentrados, negociantes). Para reconstruir a relação em base ampla, menos dependente de tais dinâmicas confusas, talvez seja melhor viver perto do fim em vez de afastá-lo. Só assim trabalharemos com os divórcios sutis bem antes de a bola de neve crescer.
Texto de Gustavo Gitti, para a Revista Vida Simples de abril de 2012